Arthur Bispo do Rosário

 

O herói do mar é o herói da morte, escreveu o filósofo Gaston Bachelard. Quem se banha na ressaca, quem à onda não se turva, é imortal. Antes de ser morador de hospício, Arthur Bispo de Rosário era morador do mar. Foi sinaleiro, e para avisar o porto ou outros barcos, usava bandeiras geométricas. Já aí começou sua trajetória de costureiro, chapeleiro maluco, que ao invés de chapéus trajava mantos, ao invés de chá bebia um suco invisível do divino.

Os anjos o puxaram pela mão, aquele pugilista inflamado. Anunciou que seu destino era peregrinar; foi até os frades, os degraus da igreja. Naquela época já desafiava a morte, num ringue onde o nocaute do incauto era permanente. Queria morrer antes de morrer, e para tanto, alçou-se como profeta: era tarefa sua então julgar os vivos e os mortos. Foi preso e mandado para um hospício, porque era pobre, solitário, vivia no mar e não tinha nada na terra.

Naquele quarto branco, de colchão fino, com insetos arrastando-se pelos pés, Bispo do Rosário começou então a tecer seus mantos de delírio. Era rei de sua cela; em sua cabeça não colavam eletrodos, em seu corpo pelado ninguém atirava água com mangueira. Vivia numa rede de relicário dos objetos do comum. Os companheiros do hospício lhe traziam coisas; e as coisas eram canopos de um sagrado que somente ele entendia.

Os mantos que teceu eram como as grandes paredes de templos egípcios: cheias de hieroglifos do comum e do cotidiano, continham a palavra, que era para Bispo do Rosário o meio sagrado da comunicação; neles passava trabalhando exaustivas horas, sem comer, pouco saindo de sua cela. Tratava-os como crianças, e aos que conseguiram expôr os tecidos em museus, perguntava se estavam bem, se gostavam do lugar que estavam expostos.

Foi corajoso porque foi úmido como o mar, mas também porque secou. Ao fim da vida, começou seus ritos mortuários para o último round com a morte. Deixou de comer e foi esvaindo-se, virando um manto de ossos e magia. E foi-se, aos 80 anos, num infarto. Sua arte parece de difícil compreensão, mas porque caminhou num terreiro delicado, onde os deuses costuram e os humanos só vencem se são do mar.

 

Tags, , , , ,

  • Edson Novaes

    https://edsonjnovaes.wordpress.com/2014/12/13/o-senhor-do-labirinto/